21 fevereiro 2003

O texto que se segue, foi publicado no passado dia 1 de Fevereiro, também no jornal O Primeiro de Janeiro, acerca de um trabalho especial sobre a toxicodependência.
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Dois homens, o mesmo destino, a mesma amante e puderam, ambos...
Renascer de novo

São dois homens do Norte. L.S. tem 40 anos; E.Q., 28. Tiveram a mesma amante e outras mais, passaram os dois pelo mesmo sofrimento. Um ano depois, seguem caminhos diferentes. A uni-los ficou uma grande amizade, conquistada entre altos e baixos.

Finalmente, juntos podem, agora, olhar para trás, para a vida que, durante anos a fio, tiveram em comum. São ambos de cidades e vilas pequenas do Norte Interior deste nosso país e, contudo, foram-se encontrar, perto da capital. Juntos, ajudaram-se mutuamente. Quando um sofria, o outro também sofria; quando um precisava de apoio, o outro estava lá para lho dar. A amizade nasceu sozinha e, hoje, podem encarar o que o futuro lhes reserva. Para trás deixaram as suas amantes, as suas inimigas.

Comecemos com L.S. Neste momento, está na faculdade, em Lisboa; o curso não é o que queria, mas com sorte, vai pedir transferência e mudar para Sociologia. A mulher e o filho, um rapaz com 11 anos, estão lá no Norte. Pelo meio do desabafo diz-nos que "já não me importo com eles; eu sei que ele é meu filho e que eu gosto muito dele mas, agora, tenho que pensar em mim". Foi o facto de pensar mais nele que o levou a iniciar o seu tratamento e livrar-se da branca, como nos confessa. Foi um amigo, professor de educação física, "que me convenceu a irmos uns fins-de-semana a Vigo, aquilo era uma maravilha". Ao fim de pouco tempo, "estava agarrado à cocaína, essa amante maldita que tudo nos tira e nada nos dá". Depois de ter assaltado dois ou três bancos, foi preso e passou pela vergonha de ser apontado na rua; as humilhações seguiram-se umas atrás das outras, uma vez que "eu morava numa vila pequena, onde toda a gente conhece toda a gente". Agora que renasceu de novo, L.S. está apavorado. "É um medo que me invade a alma e que quer tomar conta de mim". As saídas à noite foram suspensas e, o seu dia-a-dia resume-se ao percurso "de casa para a faculdade e da faculdade para casa", com uma ida esporádica ao supermercado para fazer umas compras. Porquê? Porque a senhora maldita anda aí, à espreita, e nós não podemos olhar para ela.

E.Q., aos 28 anos, não se separa de uma fotografia sua, que um dia, alguém lhe tirou. Era "um farrapo, um desgraçado que andava a deambular por aí". Agora, sempre que está em baixo, olha para o seu eu; o eu que foi um dia e que jamais quer voltar a ser. Ao sair daquela instituição que tão bem o recebeu, que tão bem o acolheu, vai ansioso rumar a Norte, na esperança de ver o filho que, "se calhar, chama pai a outro homem, que eu não conheço". Na bagagem, apenas leva a coragem; uma coragem que não teve, um dia, quando quis imitar os seus amigos mais ousados, aqueles mais «fixes». Com o corpo tatuado de velhas recordações, "que são aquilo que eu fui um dia e que, sobretudo, não posso apagar", E.Q. apenas deseja não ter que se reencontrar com a amante que quase o matou. Essa amante que o levou por países que nunca pensava vir a conhecer: esteve na Alemanha, passou por França e por Espanha e "acabei nem sei onde". A coragem, que não teve para renunciar às drogas, teve-a um dia, já quase no fim da vida. O desespero falou mais alto e, entre a espada e a parede, quando não tinha mais alternativas, optou pelo tratamento. Ao fim de um ano, muitas amizades se fizeram. Como nos confessa, "hoje conto coisas aos meus companheiros que jamais contarei à minha família". A viagem até ao Norte do país vai ser só por uma semana. "Apenas quero ver o meu filho e volto para Lisboa, para o emprego que arranjei".

E projectos para o futuro? Pergunta irónica, esta. Há sonhos, claro. Todos nós temos os nossos. Mas, quem encontrou a morte tantas vezes e, tantas vezes a conseguiu evitar, apenas sonha com o presente. A filosofa que lhes dá ânimo e força para viver, não pode ser mais simples do que esta: só por hoje. Afinal, só por hoje, "não vou usar drogas". O amanhã... quem sabe o que o amanhã nos reserva. O amanhã não interessa; aliás, nunca interessou. O que interessa verdadeiramente é que, "hoje, eu não vou usar". Foi esta a única expressão que L.S. e E.Q., amigos verdadeiros, fizeram questão de salientar.

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