21 fevereiro 2003

Este artigo, acerca da toxicodependência, (um dos melhores que fiz até hoje), foi publicado em vários jornais. Saiu no jornal O Primeiro de Janeiro, no jornal 4 Esquinas e no site Eu Sou Jornalista.
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...No sítio da paz...

"Honestidade, entre-ajuda, respeito, amizade, limites e, acima de tudo, frontalidade". A nossa conversa começou assim. Naquele lugar tão especial para eles, as confissões, os testemunhos a história das suas vidas vão-se desenrolando. Afinal de contas, nós estávamos no seu território.

Chamemos-lhe António. António tem 22 anos e já não sabe que idade tinha quando foi a sua primeira vez. A minha primeira pergunta era simples: por que motivo entraste na droga? E eu que pensava que a resposta era simples. Fiquei, depois de os ouvir a todos, com a sensação de que a resposta a essa pergunta e a tantas outras era muito, mas mesmo, muito difícil.
O local decidido para falarmos foi baptizado por eles, por Sítio da Paz; é um local que existe na sua comunidade e que serve de retiro para aqueles momentos em que querem estar sozinhos e confrontar a vida. Pensar, meditar, olhar para o seu interior e, talvez, chegar à conclusão de que vale a pena viver. E viver sem drogas é muito melhor. Como é que um jovem, no começo da sua vida se envolve na mais profunda das misérias? Que amante é esta, gulosa, arrebatadora, assassina? Entre recaídas e ressacas, o percurso de António estava escrito nos seus olhos, tristes e, lá bem no fundo do seu olhar, estava a dúvida de que alguma coisa poderia ser feita.
António confessa-nos que, de vez em quando, fumava haxixe com os amigos, apenas por brincadeira. A heroína chegou mais tarde, na comemoração do aniversário de um amigo. Voltou a consumir uma segunda, uma terceira, uma quarta vez. Quando caiu em si, estava viciado. Os dias no trabalho, corriam penosamente. Chegava atrasado, descuidava-se com o seu aspecto, adormecia à secretária. Os seus colegas repararam que algo de estranho se passava, mas ninguém imaginava qual era o verdadeiro problema. Todo o seu dinheiro ia para a droga. Fez várias tentativas para se "limpar", mas nada resultou. Decidiu afastar-se da cidade de Lisboa, acreditando que, com isso, conseguia libertar-se do produto que o escravizara. No entanto, sem família, sem amigos, sem dinheiro, sem ninguém a quem recorrer, António voltou à capital e passava os seus dias, deambulando, a arrumar carros. Ali, bem perto dos bairros onde se abastecia para alimentar o seu vício.

São tantas histórias, idênticas entre si e que têm todas o desfecho sombrio do confronto entre a vida e a morte. A escolha do que se quer fazer, dali em diante, é apenas dele e de mais ninguém. António acredita que, um dia, poderá regressar a casa. Talvez encontre à sua espera, a sua mulher e a sua filha, ainda bebé, que já não vê, nem ele sabe há quanto tempo. Talvez elas o perdoem pelo facto de ele ter transformado as suas vidas no horror por que passaram, nos bens que lhes roubou para alimentar a sua "amante".
Pergunto-lhe qual o seu maior receio. Sem pestanejar, António diz que quando sair, tem medo; um grande medo de que a sociedade não o aceite. A rejeição é, para todos estes jovens, a maior angústia, o maior pesadelo. É com este confronto que têm que passar a viver, quando transpuserem a sua vida para a nova realidade que os espera. Apesar de aparentar um aspecto saudável e, longe dali, ninguém dizer que este jovem tem, ou teve, um problema com as drogas, António sabe, lá bem no seu íntimo, que não precisa dizer a ninguém qual é o seu problema. Em jeito de explicação confessa apenas que "está escrito nos meus olhos". E não adianta contrariá-lo, confrontá-lo. Ele nunca aceitará os meus argumentos.

À sombra dos pinheiros, no Sítio da Paz, por entre o chilrear dos pássaros que poisam aqui e ali, a nossa conversa continua. Aprender a lidar com o que sentimos. É este o primeiro passo que tem que ser dado para enfrentar a sociedade, cansada do dia a dia, do stress dos seus trabalhos, da sua rotina quotidiana. A par da rejeição, os complexos de inferioridade e a dificuldade em sentir tudo aquilo que está para além da droga, fá-los encarar a vida de outra forma, de outro ângulo. Apesar disso, teima em dizer que "é impossível deixar de gostar da droga". Pergunto-lhe porquê. Se o facto de ter passado por todo este sofrimento, toda esta dor, não lhe provoca o sentimento de negação, de dizer não.

O sentimento, outra vez.

A resposta só podia ser aquela que eu não esperava. Confessa que "a primeira sensação que a droga nos causa é única, leva-nos para outra dimensão, para aquela realidade onde queremos estar". A dor, o sofrimento, o calvário, a aflição e a desgraça só vêm depois. Mas isso não interessa. O que interessa, segundo ele, "é a pica, a pedra que a droga nos causa naquele momento". Aquela sensação de "não estarmos em nós e de sermos únicos na galáxia" ultrapassa tudo aquilo por que passaram.
A desconfiança também os atraiçoa. Não "sabemos lidar com a desconfiança das pessoas porque elas olham-nos sempre como se fossemos para todo o sempre, meros toxicodependentes que, um dia, lhes arruinou a vida". E não querem passar por tudo, uma outra vez. A ansiedade acaba por chegar, mais cedo ou mais tarde. Se a família ou ouve, os entende e os apoia, se calhar, a recaída é adiada por mais umas horas, uns dias, umas semanas. Se os amigos os ajudam, os problemas até que são minimizados. Se há alguém no seu mundo capaz de os confrontar, capaz de os entender, capaz de os ouvir e de, com frontalidade, os acarinhar, talvez a recaída não aconteça.

Se... Se.
Tudo não passa de meras ilusões e, o fim do poço, o tecto a cair-lhes em cima começa a ir, cada vez mais depressa, ao seu encontro. A ansiedade da experiência, da primeira vez, sobrepõe-se a tudo o mais.
António tem, agora que está prestes a terminar o seu tratamento, a esperança de que o amanhã será diferente. O amanhã será sempre diferente. Resta saber se será melhor do que o hoje, do que o ontem.

E foi, tendo por pano de fundo o verde da paisagem e o canto dos pequenos pássaros que demos por terminada a nossa conversa. Os ponteiros do relógio tinham dado duas voltas mas eu pensava que apenas meia hora tinha decorrido, desde que nos sentámos e começámos a conversar. Se me perguntarem o que me marcou mais nesta conversa, não o sei explicar. Sei apenas que, dentro de mim, acredito que este e tantos jovens como ele, um dia sairão dali, capazes de refazer as suas vidas.
Despedi-me deles com um sentimento de alegria e desejei-lhes a maior sorte do mundo. E sei que, daqui a alguns anos me irei cruzar com eles, numa qualquer rua, numa qualquer avenida deste Portugal e, aí, saberei que tudo valeu a pena.
Vale sempre a pena viver a vida. Ao ouvi-los, apercebi-me disso muito bem.

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