21 fevereiro 2003

Este artigo, também acerca da toxicodependência, foi publicado no jornal O Primeiro de Janeiro, no passado dia 1 de Fevereiro.
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Associação Sol Nascente
Porque é preciso acreditar

Era dia de festa e estavam todos reunidos à volta da mesa. Era hora de almoço e aquele dia era especial porque o Queiroz terminava o seu processo terapêutico, dentro da comunidade. Finalmente, tinha chegado aquele dia, o dia em que, livre das dependências, o Queiroz ia deixar a associação que o recebeu nos últimos doze meses.

No fim daquele almoço, cada um disse o que lhe ia na alma, em jeito de despedida. Para o Queiroz, mais tarde, se recordar. Alguém relembrou que "boa sorte é coisa que não se diz, porque a sorte de cada um, é feita à nossa medida", ou seja, não devemos esperar que a sorte nos venha bater à porta; antes pelo contrário, devemos procura-la e fazer dela a nossa grande aliada.

Luís Miguel e Maria José, um dia, cruzaram-se com essa inimiga que, hoje, ambos combatem. Depois de terem passado por algumas instituições, decidiram o rumo das suas vidas procurando ajudar quem, como eles, outrora, também precisou de ajuda. A eles se juntou um grupo de pessoas com preocupações sobre o problema da droga e, assim, foi criada a Sol Nascente. Fazem parte da direcção e, estando ligados a uma associação, fá-los sentir bem. Luís Miguel defende que as pessoas que passaram pela experiência da droga e se libertaram, são uma mais valia na equipa técnica e na discussão das políticas da droga a nível das instânicas competentes.

A equipa técnica está constituída de acordo com a lei e, porque cada vez mais existem dependências de outras drogas, a Sol Nascente está atenta a esse fenómeno que, geralmente, também está associado ao álcool e, também aqui, neste centro é possível a sua recuperação.

Tendo por princípio, a abstinência, quem passa aqueles portões, deixa todas as drogas lá fora porque, ali dentro, não pode entrar droga de qualquer espécie. Lá dentro, existe toda uma equipa pronta a receber quem precisa de ajuda e, principalmente, quem quer ser ajudado. Maria Parcília, presidente da direcção diz que a comunidade terapêutica era mista. Hoje apenas existem rapazes a fazer os tratamentos. O principal motivo que levou a direcção a tomar tal atitude, prendia-se com o facto de se evitar romances ali dentro. Hoje, continua a ser mista "e nada nos impede de receber raparigas". Confessa, ainda que "quem sabe, um dia, não voltamos a ter aqui uma associação mista".

Programa terapêutico

O programa terapêutico praticado pela Associação Sol Nascente baseia-se no modelo bio-psico-social. Para além disso, baseiam-se na filosofia Minnesota de narcóticos e alcoólicos anónimos. No que diz respeito às terapias efectuadas, a direcção tem procurado adoptar novas terapias que, associadas às já existentes, contribuem sempre e, cada vez mais, por uma maior eficácia dos resultados. Essencialmente, as terapias que já existem tratam-se de terapias de grupo e/ou individuais, exercícios de prevenção da recaída, exercícios de confrontos e de exploração da raiva, entre muitos outros.

Para além destas, introduziu-se a terapia pela arte, pela bioenergia e os jogos psicodramáticos, bem como, o teatro, através do projecto Roda Viva, como forma de terapia e de reinserção. O desporto continua a ser uma componente terapêutica. Vários são os projectos em desenvolvimento. Aos adictos que buscam na Sol Nascente o seu equilíbrio físico e psicológico, é-lhes assegurada, após o seu processo terapêutico, a reinserção na sociedade, tanto mais que já foi criada por esta associação, uma empresa de inserção com 16 postos de trabalho, destinados a grupos desfavorecidos. Por outro lado, foi já iniciada a "contratação" de mulheres, com mais de 40 anos e, também, adictos em recuperação. Este projecto tem sido muito útil na reinserção de adictos.

Os jovens que terminam o seu processo terapêutico saem da comunidade, ou inseridos na empresa, ou inseridos em outro posto de trabalho. "É nossa grande preocpuação que a reinserção corra da melhor forma e, o projecto da empresa é apoiado pelo centro de emprego de Setúbal". Mantém-se, também, a reinserção através do Programa Vida Emprego. A Câmara de Palmela, com a sua grande sensibilidade para o fenómeno da droga, apoia pontualmente a associação. O projecto da empresa de inserção e um outro projecto apoiado pelo Saúde XXI, merecerão, da parte da direcção, um desenvolvimento numa outra entrevista.

Foram iniciados, ainda, contacos com outras câmaras e juntas de freguesia para se estabelecerem protocolos.

Uma nova terapia que, a curto prazo, a direcção desejaria de colocar em prática é a terapia do grito. Para o efeito, existe já um projecto de remodelação e ampliação das instalações por forma a se poder utilizar esta terapia, já que ela envolve a criação de uma sala, isolada no que diz respeito à acústica e à sonoridade. O principal objectivo desta terapia é fazer com que o utente solte todas as emoções que tem dentro de si. No entanto, foram já realizadas algumas experiências que, nas palavras da presidente da Sol Nascente "correram muito bem e foram bem aceites".

Por vezes, sempre que se justifique, Sandra Morgado, uma das psicólogas da Sol Nascente refere que há alterações no quotidiano do grupo. Sempre que um dos membros faz anos ou, sempre que há uma saída, o dia é ligeiramente diferente, por forma a haver uma confraternização entre todos. Contudo, Sandra Morgado, adverte que "nessas alturas, vêm ao de cima muitas emoções".

Para além destas terapias, o recurso a grupos de ajuda mútua, nomeadamente, os alcoólicos anónimos e/ou os narcóticos anónimos, é também uma constante. Maria José, também ela responsável pela Sol Nascente, afirma que "frequentamos, durante três vezes por semana, essas salas de grupo, porque achamos que é uma mais valia para o tratamento dos nossos jovens". Para além disso, "acreditamos que o leque de amizades que se fazem nessas salas, são uma mais valia, tanto mais que quando eles aqui chegam, não têm quaisquer amigos". Maria José afirma-nos isso mesmo: "nas salas, encontramos pessoas que partilham os mesmos problemas, os mesmos medos e idênticos receios", acrescentando que "eles gostam de partilhar essas emoções e os seus sentimentos com outras pessoas, porque isso fá-los sentirem-se bem consigo próprios", uma vez que, "para além de darem, também recebem e, isso, parecendo que não, é muito importante para todos eles". Associado a isso, está o facto de que, "tudo o que é dito ali dentro, não passa cá para fora; é quase como se morresse lá dentro".

A filosofia do programa adoptado pela Sol Nascente é de um ano, mais seis meses de reinserção. Durante o programa são transpostas várias fases, que começa com a adaptação, quer à comunidade, quer às terapias e à equipa técnica, quer aos colegas que lá residem. A par disso, existe um conjunto de regras e de normas que têm de ser seguidas e cumpridas por todos, sem qualquer excepção. Progressivamente, vão-se ultrapassando as fases e vai-se "subindo" de degrau; um de cada vez. À medida que cada fase vai passando, as responsabilidades vão aumentando e, chegados ao último degrau, a reinserção é feita fora da comunidade.

Alguns casos são especiais, porque o utente demonstra capacidade para tal e, aí, é convidado a ficar na associação, a colaborar com os técnicos e a ajudar o próximo.

O Queiroz teve essa sorte e vai ficar perto dos seus colegas. Vai ajuda-los a ultrapassar tudo aquilo por que ele já passou. Mesmo aqueles que, hoje, estão reinseridos na sociedade, não esquecem a associação e, continuamente, voltam para matar saudades ou telefonam a contar novidades. Sandra Morgado, conta isso mesmo. Ela confessa que "temos um utente que, sempre que acontece qualquer coisa de bom na sua vida, me liga logo a contar as novidades". De igual forma, "sempre que estão em baixo, ansiosos ou deprimidos, sabem que podem contar connosco, a qualquer hora, em qualquer dia da semana".

Os medos, receios e fantasmas são uma coisa que os irá acompanhar durante muito tempo. A uns, mais do que outros, mas do que temem é de uma recaída. Sandra Morgado afirma que "eles saem daqui muito afectados, principalmente no que toca à sexualidade e, o medo de falharem emocionalmente ou a nível profissional, ou até mesmo de não serem aceites pela sociedade, por vezes, faz com que recaiam".

Avó Maria

Uma das pessoas mais queridas nesta associação é, sem dúvida, a avó Maria e, sempre que um dos seus "netos", a abandona, as lágrimas insistem em rolar-lhe pela face. Ela sabe que é para o bem deles, mas vê-los sair dali, depois de os ter acompanhado, nas actividades, durante tanto tempo, ainda lhe custa um pouco. Os setenta anos já lá vão e não têm conta as caras que por ali viu passar. Uns ficaram até ao fim, outros desistiram; uns fugiram e nunca mais voltaram, outros acabaram por voltar e cumprir o tratamento até ao fim. Para a nossa reportagem, ela sorriu, de braço dado com o seu mais recente "neto" que vai sair da comunidade. Mesmo sabendo que ele apenas vai passar uma semana a casa com os pais e que vai voltar, para ali trabalhar, do bolso do seu avental ela tira um lenço para enxugar as suas lágrimas.

É nesse sentido que Maria Parcília afirma que, "enquanto houver jovens como o Queiroz a precisarem da nossa ajuda, nós vamos cá estar para os continuar a receber de braços abertos". Por isso mesmo, toda a direcção e toda a equipa técnica da Sol Nascente, quer sempre mais; quer sempre continuar a ajudar quem precisa e quem os procura. Por isso mesmo, os projectos são mais que muitos e, a esse respeito, Luís Miguel e Maria Parcília confessam que "numa outra oportunidade, nós diremos que projectos são esses", acrescentando que "é preciso acreditar que estes jovens possam ser reinseridos na sociedade, livres de qualquer tipo de droga".

A Associação Sol Nascente procura apostar nos afectos, no calor humano, na qualidade e na reinserção, fase por excelência do percurso de um adicto que decida procurar ajuda.

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