26 maio 2003

Como é que um homem formado em letras gere uma "empresa"? O resultado está numa entrevista que fiz ao presidente do Instituto Piaget, António Oliveira e Cruz e que vai ser publicada na próxima quarta-feira, dia 28 no jornal O Primeiro de Janeiro.

“É preciso saber pensar...”


Quando, hoje em dia, se fala em recursos humanos de uma empresa, pensa-se logo em gestão, economia, rendimentos e como se pode aumentar a facturação de uma determinada empresa, tendo em conta o desenvolvimento e a evolução das novas tecnologias. Homem de letras, apaixonado pela filosofia e com livros editados de poesia, António Oliveira e Cruz tem outra opinião. Completamente diferente. Fomos ouvi-la...

Afirma que sempre foi um sonhador e, em pequeno, confessa que costumava falar com as pedras e com as árvores. Aliás, foi o contacto com a natureza “que me marcou para sempre”, adianta. Escreveu o seu primeiro poema, tinha 14 anos e, hoje, já publicou mais de 30 livros. A maioria deles, de poesia “porque a poesia é essencial; é o fundamento da sabedoria e da vida”.
Admitindo que “sempre fui um sonhador”, Oliveira e Cruz realizou o seu maior sonho quando, depois de um congresso de educação, que ocorreu em Lisboa, decorria o ano de 1978, surgia a ideia de se implementar o Instituto Piaget em Portugal. E, o que começou por ser uma entidade que ministrava acções de formação, tornou-se na maior instituição de ensino privado e cooperativo do nosso país. Hoje, é uma instituição única na Europa, com ramificações em várias regiões do país e em vários países africanos.
Na sua denominação social, o Instituto Piaget é uma cooperativa para o desenvolvimento humano integral e ecológico. A nossa primeira pergunta era inevitável: como é que um instituto superior, cuja finalidade última é a de formar pessoas, promove esse desenvolvimento entre as pessoas.
Oliveira e Cruz não hesitou e defendeu a ideia de que “tudo aquilo que é criado pelo Homem, e de que o Homem é criado, tem que ser considerado humano, mesmo quando as suas acções, sejam elas marcadas pela bondade em si mesmas, sejam elas perversas, atingem o extremo”. Por conseguinte, “tudo aquilo que o Homem produz, mesmo que tenha efeitos perversos, tem que ser considerado humano”. Defendendo que o bom ou o mau, somos nós que o definimos e não a natureza, Oliveira e Cruz é de opinião que “é o Homem que define o que é bom ou mau, em função de si próprio”, mesmo quando utiliza um deus como fundamento ou juiz de tal escolha ou tendência. Apesar de termos andado a construir a história numa grande diferenciação entre o Homem e os animais”, “estamos a chegar à conclusão que esse fosso não existe, uma vez que existe uma cultura de continuidade entre aquilo que o animal faz e aquilo que o homem cria”. E, essa mesma teoria aplica-se, mesmo quando o homem cria algo que nos causa prejuízo, como é o caso da bomba atómica. O homem criou essa arma e, no entanto, a sua perversidade pode levá-lo a destruir a sua própria espécie. “É uma espécie de Deus que, no fundo, se destrói a si mesmo”, acrescenta. Por outro lado, “o ser humano tremendamente racional é o mais tremendo dos predadores e dos destruidores”. Daí que seja necessário e indispensável assumir o Homem todo: o Sapiens-demens, como diz Edgar Morin.
Nesse sentido, o Instituto Piaget, segundo nos confessa, “tem este objectivo, o desenvolvimento humano e integral, porque nós somos o resultado de uma evolução, no qual não só evoluiu o nosso corpo como também a nossa inteligência e a nossa sociabilidade”. Para além disso, isso só se consegue, “mediante a aceitação de tudo aquilo que nós somos na realidade”.
Uma outra área importante do Piaget, é a sua divisão editorial, cujo projecto inicial foi criado para contribuir para a criatividade científica e cultural, assim como para uma maior difusão do saber. Segundo nos conta Oliveira e Cruz, “tem raízes profundas no projecto pedagógico, cultural, social e ecológico da instituição e assume-se, hoje, com um perfil próprio e um lugar de pleno direito no panorama editorial da língua portuguesa”. Neste momento, tendo já ultrapassado a edição de mais de mil títulos, “está actualmente em curso um projecto de promoção das nossas obras e da imagem da nossa editora, junto das principais universidades portuguesas e brasileiras, visando um maior e melhor conhecimento do nosso propósito cultural junto do nosso público alvo por excelência”. Acima de tudo, o que se pretende é gerar saber, porque o torna mais acessível e, em última análise, “estamos a investir num Portugal que se deseja de futuro, juntamente com todo o mundo de língua portuguesa”.

Educação fundamental

Reportando-se à forma como a temática dos recursos humanos é abordada no actual panorama do ensino superior em Portugal, Oliveira e Cruz considera que “tem que se partir sempre de alguns princípios importantes: um, que é essencial, é que a formação e a educação são um processo de evolução necessário à própria condição do ser humano”. Nesse sentido, “todos os seres vivos levam vários anos a conseguir a sua maturidade e a educação é um processo de maternagem que leva o seu tempo”. Daí que, “a educação é, fundamentalmente, estar atento à evolução própria de cada indivíduo na sua comunidade, de maneira a potenciar aquilo que, nas diferentes fases, a pessoa apresenta como exigências e como possibilidade”.
Um outro princípio essencial é que “a educação faz-se de baixo para cima e de dentro para fora, uma vez que a evolução humana se processa segundo um percurso bio-psico-social”. Um outro princípio é que a condição obrigatória do próprio ser humano é a partilha e/ou transferência de conhecimento. A esse respeito, Oliveira e Cruz considera que “conhecer é o acto de captar em função de si, no meio ambiente, coisas, seres ou objectos” construindo-se, nesse acto, ao mesmo tempo universal e único. E é isso que torna os seres humanos diferentes entre si, e diferentes na forma de partilhar e transmitir o seu conhecimento.
Daqui parte um outro enorme princípio e é de que ninguém tem mais ou melhor inteligência do que outro. Oliveira e Cruz é peremptório em afirmar que “face a um determinado assunto, o que se pode dizer é que, o que cada um conhece e a forma como esse conhecimento é interligado, é mais ou menos eficaz em função de um ou outro critério”. Partindo dessa base, será que se pode falar em ser-se mais ou menos inteligente? A resposta do presidente do Piaget é só uma: “não”. E, isto porque, “conhecimento é uma coisa; inteligência é outra”. O único elo de ligação entre conhecimento e inteligência é, para Oliveira e Cruz, “o pensamento, porque todos nós pensamos; cada um à sua medida, é certo, mas todos nós pensamos. E a medida de cada um é incomensurável”. Comparar inteligência é uma aberração social e uma tolice científica.

Filosofia e pensamento

É nesse sentido que o pensar conduz a nossa conversa até à filosofia. E, obrigatório, é falar do facto de a disciplina de filosofia ter sido retirada do plano curricular do 12º ano.
Sendo Oliveira e Cruz um fervoroso mas lúcido crítico dessa tomada de atitude por parte do actual ministro da educação, o presidente do Piaget refere que “a nossa cultura ocidental, no que ela tem de mais forte, é incompreensível se não tiver em conta duas dimensões fundamentais”, acrescentando que “são elas o resultado da sua profunda vivência histórica: a dimensão da maternagem humana através da língua (daí o chamar-se língua materna), e a dimensão do pensar.
O saber-pensar, o pensar enquanto dimensão estruturante humana, é incontornável em toda a formação. Daí que “uma pessoa que tenha chegado a adulto, sem ter reflectido sobre os problemas fundamentais da sua própria existência (que, no fundo, foi o que a filosofia fez), não fez nada”. Afinal, “o que foi que essa pessoa fez?”, interroga, considerando que “mesmo uma criança, de 4 ou de 5 anos, já tem que se confrontar com problemas filosóficos”. A título de exemplo, Oliveira e Cruz refere uma criança de 4 anos que, em tom de interpelação, disse à sua mãe: «a verdade e a mentira, são tudo mentira». E, quando a mãe lhe pergunta o porquê dessa afirmação, ela apenas responde «não estás a ver?». Nas palavras do presidente desta instituição, “a criança, pura e simplesmente, estava a pensar grande. Esta é uma daquelas afirmações que pode perdurar durante vários séculos e milénios, sem que ninguém perceba a sua justificação, mas que nos perturba mais profundamente que a interrogação da esfinge”.
É por isso que Oliveira e Cruz defende que “as crianças e os jovens têm que ter uma alimentação filosófica de base, que tem que ser trabalhada ao longo de toda a vida”. Por conseguinte, “eu tenho muita pena que o actual Governo tenha adoptado as atitudes que adoptou ao desvalorizar a importância da problemática filosófica no sistema educativo”.

Futuro da sociedade

Partindo do pressuposto que “o ser humano é o pilar da sociedade”, Oliveira e Cruz é de opinião que “para além da importância que reveste a sustentabilidade económica, é necessário ter em conta a sustentabilidade social e humana”, ou seja, “é urgente que a sociedade tenha uma estrutura suficiente para receber todos os seus novos elementos e para tratar condignamente quem está ou quem vai estar nessa mesma sociedade”.
Acima de tudo, Oliveira e Cruz defende que “o modelo de sociedade que eu idealizo é aquele que não rejeita ninguém e que integra toda a gente, com as suas diferenças; estas são necessárias e imprescindíveis a uma qualquer sociedade”. E é esta sustentabilidade social que uma empresa - “que saiba existir como uma estrutura complexa - tem que ter para poder concretizar-se como transformadora de produtos e informação numa rede empresarial altamente competitiva”.
Por outro lado, “tudo aquilo que nós fazemos, faz parte de uma construção pessoal e, se fazemos coisas que nos desfazem, estamos a desfazer-nos a nós próprios”. Nesse seguimento, vem a sustentabilidade humana e no facto de se pensar que “o homem não vive apenas anos, mas milénios e, se possível, viver o mais possível, face às condições que existam e, isso é que é o mais importante, pois é isso que nos dá a dimensão do longo prazo; da dimensão da humanidade, enquanto humanidade”. Por isso é que, “todo o homem concreto, ao mesmo tempo que é único, é também universal”.

Caixa:
“Na caminhada do aprender e do saber, a formação será sempre uma busca permanente de novos caminhos que conduzam ao desenvolvimento pessoal e colectivo. Por isso, construímos os Campus Académicos, espaços onde funcionam os institutos universitários e a escolas superiores de educação e de enfermagem Jean Piaget, em Vila Nova de Gaia, Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Viseu, Almada, Santo André e as universidades Jean Piaget em Angola e Cabo Verde.
Fazemos hoje ensino de qualidade, porque é com qualidade que pensamos o teu futuro! Contamos contigo!”

António Oliveira e Cruz

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