24 maio 2021

Dezoito anos depois

Escrevi, há já 18 anos, nos meus tempos de Jornalista, um texto a que dei o título "No sítio da Paz" e que foi publicado no jornal "O Primeiro de Janeiro".

Podem ler esse texto clicando AQUI.

Dezoito anos depois, num exercício de escrita criativa, decidi "continuar" esse relato, como se tivesse reencontrado o personagem dessa história, ou ele a mim. Trata-se de um texto de ficção, utilizando algumas técnicas de escrita de não-ficção.

O encontro estava marcado para o meio dia. Como por coincidência, os nossos caminhos voltaram a cruzar-se no dia anterior, dezoito anos depois de nos termos encontrado pela primeira e única vez. E foi ele quem se acercou de mim e se voltou a apresentar. Voltemos a chamar-lhe António, porque foi dessa forma que eu o consegui voltar a identificar, enquanto que ele me reconheceu pela cor ruiva dos meus cabelos, no preciso momento em que nos cruzámos na passadeira. Havíamos falado uma única vez, há quase dezoito anos, naquele local batizado por ele, e por outros, de “O Sítio da Paz”. Nessa altura, depois da nossa conversa – longa –, voltei para a redação, escrevi aquele texto e, no dia em que o jornal saiu para as bancas, António decidiu telefonar-me. Simplesmente para me agradecer. Um obrigado sentido por o ter escolhido e retratado, a ele, no meio de tantos outros.

Agora, no alto dos seus mais de quarenta anos, António respira de alívio. As olheiras já não estão tão pronunciadas, os ossos já não estão tão vincados no seu corpo e ele já não está tão escanzelado, nem as suas mãos tremem, como outrora. Só os dentes é que nunca mais voltaram a ser o que eram. A cor dos que ainda guarda, agora acastanhados, deixam transparecer que já não há mesmo nada a fazer e os cigarros que continua a fumar, uns atrás dos outros, também não ajudam. “Não vai demorar muito até os arrancar e ter de colocar uma prótese”, confessa ele. E as dores, acrescenta, de longe a longe ainda as sente, percorrerem-lhe a coluna, de alto a baixo. Tirando isso, é viver um dia de cada vez e rezar para que a tentação o não assole a cair de novo naquela vida de amargura de antigamente.

Nascido naquela por que é conhecida, a terra do Sol, foi para a Amareleja que António decidiu regressar quando acabou o seu tratamento e lhe disseram que estava pronto para seguir o seu caminho. Lágrimas, ouve muitas e medo. Muito medo de falhar, de cair, de não se conseguir conter nem reerguer. Um amigo, daqueles que “guardamos para a vida”, arranjou-lhe lá um trabalho na Central Solar Fotovoltaica, considerada até 2008, a maior do mundo. Foi dos primeiros a ir para lá “fazer limpezas e o que mais fosse preciso”, mas não se quedou por lá muito tempo porque, “ao fim de um ano, aquilo era muito calmo para mim e eu também nunca me dei bem com o calor”, remata António, rindo.

Lisboa até teria sido uma boa escolha, mas depois de assistir na televisão “àquela monstruosa manifestação do povo contra o Sócrates”, decidiu rumar a Norte e escolher a cidade do Porto para se fixar. A crise económica que se iniciara um ano antes, estava a afetar todos os países, mas António ouvira dizer que o turismo no Porto começava a revitalizar e, até agora, “não me arrependo de ter vindo”. Com o dinheiro amealhado, conseguiu instalar-se numa residencial de segunda, daquelas em que a humidade não permitia descortinar qual a verdadeira cor dos tetos e das paredes do quarto. Em menos de duas semanas arranjou trabalho nas obras. “Era o que havia, tudo ao negro, sem contratos e recebíamos ao fim da semana”, o que ia permitindo mudar de poiso, pelo menos, para um lugar mais “decente”. Seguiram-se tantos outros trabalhos, que António já lhes perdeu a conta e, hoje, já nem consegue enumerar todos os locais por onde passou: cafés, restaurantes, hotéis, lojas de brinquedos e tantas outras. Hoje está bem, confessa, mas sempre que os patrões abusavam dele, virava costas e ia embora. “Dormi muitas noites na paragem dos autocarros, em frente à igreja do Marquês, até que o senhor padre me veio deitar a mão”.

E aquela vida? Quis eu saber. Está tudo no passado? “Felizmente”, respondeu António, depois de voltar a respirar fundo para, logo de chofre, confessar ter tido uma recaída, depois de uns dias a deambular na cidade, sem teto, sem emprego e sem nada para comer. Num desses dias, igual a tantos outros, António deu por si a arrumar carros na praça Velasquez. E, como por acaso, encontrou uma carteira no chão. Guiado por uma vã esperança de que as coisas se podiam alterar, qual destino cujos astros se estavam a alinhar para que ele se endireitasse, e deu de caras com outro arrumador, num beco, a injetar-se. Como que hipnotizado, António caiu na tentação e o clamor da sua mente foi mais forte do que a vontade do seu corpo. E foi naquele momento de completo êxtase, de pura contemplação que o seu corpo deu de si, como que a revoltar-se do vil ato que o seu amo acabara de cometer. As entranhas revolveram-se ao ponto de nada conseguirem suster, o pouco conteúdo do seu estômago rodopiou dentro dele e uma lancinante dor percorreu-lhe corpo e alma. Esvaziado por completo, sujo como nunca se havia encontrado, António acabou por se aninhar, enrolado como se enrolam as crianças, as mãos cruzadas atrás da cabeça e chorou, copiosamente, como nunca tinha chorado, nem mesmo quando abandonou os amigos na comunidade que o havia salvado, anos antes.

O tormento de António acabou quando o padre Rubens lhe tocou, com as suas grossas e peludas mãos, o olhar de bondade como que a encurrala-lo. Ele não quis saber porque tinha o corpo imundo ou como conseguia exalar aquele cheiro nauseabundo. Abriu-lhe as portas da sua paróquia, acolheu-o em sua casa e fez dele um exemplo vivo para os mais novos seguirem. Aconselhou-o, ajudou-o, motivou-o e estendeu-lhe a mão no momento que ele mais precisava. Deu-lhe os merecidos raspanetes, no seu devido lugar e quando o tempo o permitiu ou as feridas sararam. Fez dele o Homem que ele é hoje e António está-lhe eternamente agradecido por isso. E transmite-lhe esse reconhecimento, todos os dias, com todas as palavras, com todo o trabalho que faz na paróquia e com todo o tempo que lhes dedica, principalmente aos mais jovens.

Dezoito anos depois da nossa primeira vez, também na nossa segunda conversa, o por-do-sol estava presente. António era agora um homem feliz e ele sabia-o. Inspirava outros para não enveredarem pelos caminhos escabrosos que ele havia percorrido e adorava estar rodeado de crianças. E as crianças retribuíam-lhe com a mesma moeda. E o que é que a sua família acha de tudo isto? Perguntei eu, como que a rematar a nossa conversa. “A minha família são estas crianças”, respondeu ele ao encolher os ombros, “os outros não interessam”.


foto: andes sem parar

1 Comentários:

Unknown disse...

Que bela escrita, humana e sentida.